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O direito de morrer: volta ao mundo em trinta dias

Com marcos como a legalização da eutanásia em Portugal e da decisão da Corte Constitucional alemã pela descriminalização do suicídio assistido, o mês de fevereiro foi marcado por debates ao redor do mundo a respeito do direito de morrer e os caminhos para sua efetivação. Os debates também vêm encontrando a necessidade de se sofisticar a fim de abranger hipóteses como as de suicídio assistido de menores e de doentes psiquiátricos.

A eutanásia consiste na adoção de procedimentos, pelo médico, a fim de proporcionar uma morte indolor a uma pessoa vítima afligida por grandes sofrimentos, em regra causados por doenças incuráveis ou condições irreversíveis. O suicídio assistido possui a mesma finalidade, mas nele o paciente põe fim à própria vida enquanto auxiliado por um médico.

Bélgica: eutanásia sob juízo

Em janeiro, uma corte na Bélgica inocentou três médicos que realizaram uma eutanásia em 2010. A eutanásia é legalizada no país, mas em razão das controvérsias do caso referentes à condição da paciente, os promotores e irmãs da falecida acusaram a equipe médica: apesar de ter sofrido significativamente ao longo da vida com enfermidades psiquiátricas e apresentar comportamentos suicidas na adolescência, o parquet alegou que a eutanásia havia sido motivada por uma decepção amorosa. A corte decidiu a favor dos três médicos, favorecendo os réus frente ao benefício da dúvida.

O país permite o procedimento desde 2002, tendo ampliado seu escopo em 2014 a fim de incluir crianças e adolescentes, que devem ser representados por seus responsáveis legais. A legislação belga impõe exigências para a realização da eutanásia:

  • O paciente deve ser capaz de expressar sua vontade conscientemente, seja no momento do pedido ou através de uma declaração antecipada;
  • Portar uma condição médica incurável, que cause sofrimento físico ou mental insuportável.

Canadá: o caso das doenças mentais

Parliament Hill, em Ottawa. Sede o governo canadense.

O parlamento canadense descriminalizou tanto a eutanásia voluntária como o suicídio assistido em 2016, na ocasião da aprovação de uma emenda ao código penal do país. A legislação restringe os procedimentos a doentes terminais, excluindo menores e os afligidos por enfermidades mentais. A lei atual, que sucedeu uma decisão paradigmática da Suprema Corte do Canadá em 2015, prevê sua legalidade nos casos em que o paciente é afligido por uma enfermidade incurável e seu falecimento é previsível em um futuro razoável.

Contudo, uma proposta de emenda à legislação a fim de incluir pacientes de doenças mentais dentre as hipóteses deu início a debates no país. O Legislativo canadense deve apresentar uma posição até março de 2020. O trabalho dos parlamentares é dificultado pela presença de relatórios divergentes publicados após o Conselho das Academias Canadenses se manifestar sobre pontos controvertidos da lei de 2016 no que tange a solicitações complexas de pacientes e suas famílias: a inclusão de menores e relativamente capazes, pedidos antecipados e pedidos em que a doença mental é a única condição médica do paciente.

Por um lado, o primeiro relatório concluiu que uma decisão livre e consciente de seu portador é válida e possível —  ainda que tenha manifestado o receio de uma superinclusão de pacientes. Um segundo relatório mencionou a dificuldade (ou mesmo, impossibilidade) de se determinar pelo estado da arte se a saúde do paciente encontra-se em franco declínio de maneira a justificar o procedimento de eutanásia ou suicídio assistido.

Os relatórios conflitantes representam a dificuldade de se obter consenso no tópico, o que exigirá um posicionamento cauteloso do parlamento.

Portugal: no caminho para a legalização das práticas

Interior da Assembleia da República de Portugal, onde se situa seu Poder Legislativo.

O parlamento português votou pela descriminalização da eutanásia e do suicídio assistido. Em virtude da semelhança temática, os projetos foram votados em bloco. Os temas são polêmicos para o país de maioria católica: já foram discutidos na história recente, quando em 2018 a mesma casa rejeitou o projeto de lei. Ainda, conta com a oposição da Igreja Católica e de pareceres contrários dos conselhos profissionais de medicina e enfermagem do país. A proposta deve seguir para o veto presidencial que, se rejeitá-la, pode ter seu veto derrubado pelos deputados. A atual maioria no Legislativo português sugere grandes chances para a conversão do projeto em lei.

Os procedimentos teriam em vista as seguintes exigências legais:

  • O paciente deve ser maior de idade e capaz de tomar suas decisões de forma consciente;
  • Não precisa ser de nacionalidade portuguesa, mas deve residir no país;
  • A condição médica do paciente deve ser incurável e definitiva, e provocar sofrimento duradouro e insuportável; excluem-se as enfermidades mentais;
  • O caso deve ser avaliado por dois médicos, sendo ao menos um deles especialista na condição que motiva o pedido;
  • A solicitação também é analisada por uma comissão de bioética, após a aprovação dos médicos;
  • O paciente deve reiterar seu pedido durante o processo.

Alemanha: a descriminalização do suicídio assistido pela Corte Constitucional

A Corte Constitucional Alemã, em Karlsruhe

Em oposição a uma lei aprovada em 2015 pelo parlamento alemão, a Corte Constitucional alemã decidiu pela descriminalização do suicídio assistido. A lei consistia em uma emenda ao Código Penal que criminalizava a prática com a finalidade de coibir sua exploração comercial. No entanto, seus críticos apontam a forte influência das igrejas evangélicas e católicas como um dos fatores prováveis que levaram à publicação da norma: a União Democrática Cristã (CDU) consiste em um dos maiores partidos do país, com representação significativa em muitos dos Estados da federação.

A Corte defendeu que a proibição ao suicídio assistido era uma violação ao direito de autodeterminação da morte, que integra direito geral de personalidade. Assim, tratava-se de lei inconstitucional e contrária à Convenção Europeia de Direitos Humanos. Como se lê da decisão do tribunal constitucional:

“O direito geral de personalidade (Art. 1°, inciso I, em conexão com o art. 1°, inciso I, da Lei Fundamental) inclui um direito à autodeterminação da morte. Esse direito inclui a liberdade de se tirar a própria vida e de fazê-lo e, nesta ocasião, de contar com a ajuda livre e consciente de um um terceiro. A decisão tomada por um indivíduo em observância a seu direito de por fim à própria vida, conforme seu entendimento de qualidade e de sentido de sua própria existência, deve ser respeitada como um ato autônomo de autodeterminação pelo Estado e pela sociedade.”

Decisão da Corte Constitucional Alemã [BVerfG], publicação 12/2020 de 26 de fevereiro de 2020

Entretanto, a Corte ressalta que não se pode demandar a um médico sua participação no procedimento, com vistas ao respeito a sua autonomia profissional.

A decisão da corte representa uma demanda histórica de associações pela medicina paliativa e pacientes terminais, ainda que inesperada, visto a edição recente da lei. Muitas das associações orientavam pacientes a buscá-lo em países vizinhos que já legalizaram a eutanásia e o suicídio assistido, como Bélgica, Holanda e Suíça.

Advogado formado na Faculdade de Direito da USP, desde sempre nutriu um profundo interesse pelos dilemas em que a ética, o direito e a ciência se encontram. No tempo livre gosta de ler, caminhar, e fingir que toca violão.

3 Comentários

  • Roberto Pizarro

    Fico pensando o que aconteceria, se essa prática fosse adotada no Brasil. Será que poderiam usar de má fé e permitir que familiares com intenções obscuras, determinassem o fim do sofrimento do ente “querido”, para benefícios próprios(como antecipar uma herança).
    Achei que as condições impostas pela Bélgica muito boas, evitando que possa ocorrer o exemplo já citado.
    Será que nos outros países adeptos a esse tipo de procedimento, tomaram precauções semelhantes as Belgas?

    • Caio Caesar Dib

      A preocupação de parentes assinarem a eutanásia do paciente com segundas intenções é bastante válida. Mas acredito que é algo que pode ser sanado desde que a eutanásia e o suicídio assistido permaneçam como último recurso (casos em que não há chance de cura) e sempre se coloque a vontade do paciente em primeiro lugar.

      Dá pra comparar, nesse sentido, com o procedimento adotado pelo Brasil para confirmar a morte encefálica (quando o cérebro para de vez, ainda que o coração continue batendo): tem uma regulação bastante rígida e, apesar desse medo existir quando o processo virou norma no Brasil nos anos 90, é tão rígido que nunca tivemos problemas.

      Precaução e treinamento da classe médica são fundamentais

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