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O debate ético por trás da distribuição de vacinas

O fim de 2020 viu algumas vacinas que estavam em desenvolvimento alcançarem os estágios finais da pesquisa clínica. Dentre aquelas que apresentam maior maturidade e já começaram a ser aplicadas em regime emergencial, estão: a desenvolvida pela Pfizer com a BioNTech em uma parceria germânico-estadunidense; a vacina Sputnik V, do laboratório russo Instituto Gamaleya; a Coronavac, fruto da parceria firmada entre a farmacêutica chinesa Sinovac com diversos laboratórios ao redor do mundo, dentre eles o Instituto Butantan em São Paulo; a vacina Covishield da britânica Astra-Zeneca, desenvolvida em parceria com a Universidade de Oxford e o Instituto Fiocruz, situado no Rio de Janeiro. Há também outras vacinas já sendo aplicadas. Entretanto, isso é apenas o início de uma enorme corrida biotecnológica pelo desenvolvimento desses imunizantes, como demonstra o levantamento realizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Por outro lado, pesquisa e desenvolvimento de vacinas não são o único desafio no enfrentamento da pandemia. Frente à escassez de imunizantes em relação à demanda mundial, a comunidade global se pergunta: como distribuir as vacinas? É certo que uma decisão com tamanha importância não pode ser fundamentada apenas em força bruta ou poder econômico, ainda que o que estejamos presenciando no momento seja uma corrida desesperada pelo imunizante. Nessa corrida, o Brasil testemunha derrotas sucessivas que prenunciam um verdadeiro desastre, com Estados buscando por seus próprios meios assegurar o acesso ao medicamento. Em vez disso, é indispensável que a decisão baseie-se em valores éticos articulados em um esforço de reconciliação global — uma decisão que se mostre justificada no cenário global.

Vacina e desigualdade

As dificuldades estão, desde o início, na disparidade entre países no que se refere à aquisição dessas vacinas. Conforme veiculado no portal Visual Capitalist, as diferenças são radicais:

Fonte: Visual Capitalist. Tracking COVID-19 Vaccines Around the World

O gráfico diferencia os países com base em sua renda per capita. Assim, cor azul-escura representa países de renda média-baixa, como Índia e Egito; de tom de azul mais claro, os países emergentes e de renda média-alta como o próprio Brasil. O turquesa indica os países de renda elevada, geralmente com alto índice de desenvolvimento humano (IDH); a fração cinza se refere a uma iniciativa global liderada pela OMS e pela Aliança da Vacina (Gavi), que visa redistribuir imunizantes entre países mais necessitados. Contudo, alguns países como a China ficaram de fora do gráfico por falta de informações. A desigualdade entre vacinas compradas é evidente: mais da metade dos imunizantes já está destinada a países ricos, e as vacinas reservadas para países de renda inferior são consequência da produção ou colaboração com o desenvolvimento dos imunizantes nesses respectivos países, como é o caso da Índia, que produz a Covishield, vacina da Astra-Zeneca, no Instituto Serum.

Nota-se, por exemplo, que um país com cerca de 38 milhões de habitantes como o Canadá adquiriu 358 milhões de doses. Isso é quase o dobro de vacinas do Brasil, que com cerca de 212 milhões de habitantes adquiriu 196 milhões.

Embora a carência e o contraste na distribuição de vacinas — que parecem ser a única solução duradoura para a pandemia — seja um evento traumático para todo o mundo (e em especial o mundo emergente), o fenômeno é algo que inúmeros especialistas e organizações já previam. Dentre eles está a própria OMS, que se posicionou sugerindo uma das primeiras propostas para a distribuição justa de vacinas.

A proposta da OMS para a alocação de vacinas

Sede da Organização Mundial de Saúde, em Genebra

A atuação da OMS no âmbito da pandemia foi alvo de inúmeras críticas no que diz respeito à parcialidade e à omissão do órgão. Os ataques foram alimentados de um lado pela postura negacionista de governos como o estadunidense e o brasileiro, que questionaram a eficácia das medidas de saúde pública com respaldo científico que a OMS apresentara, e de outro pelas críticas à falta de assertividade do órgão perante a demora do governo chinês para a divulgação de que a pandemia havia eclodido no país. Assim, o ano de 2020 viu o enfraquecimento político do órgão mesmo com o protagonismo que ele assumiu durante a pandemia. A saída dos Estados Unidos da América da organização internacional durante a liderança de Donald Trump agravou ainda mais a situação, e só deve ocorrer um retorno do país ao órgão no governo de Joe Biden.

A proposta da OMS foi finalizada no início de setembro de 2020 e baseia-se em princípios já consagrados pela saúde global, como solidariedade, responsabilidade, transparência e justiça. Pode ser resumida em duas fases: (1) a distribuição de vacinas proporcional à população dos países beneficiados e (2) a distribuição correspondente às populações que se encontram nos grupos de risco de cada país (profissionais de saúde, idosos, portadores de comorbidades).​1​ Assim, podemos apontar que a postura da OMS demonstra certa neutralidade geopolítica aparente. O órgão estar pisando em ovos é um fato que não surpreende a ninguém, considerando a fragilização da imagem da entidade. A recomendação da entidade não tem valor normativo para seus integrantes. Contudo, a proposta direcionará os esforços liderados pela OMS, como o próprio COVAX já mencionado.

Críticas à proposta da OMS

Entretanto, dar a todos os países o mesmo peso leva a implicações muito questionáveis eticamente. E isso se reflete em ambos os critérios: na distribuição de vacinas proporcional à população, mas também na escolha de grupos de risco como parâmetro para a alocação da fase 2 (profissionais de saúde, idosos e portadores de comorbidades). A consequência imediata dos critérios beneficia (1) países com maiores populações e (2) países com maior número de indivíduos pertencentes a grupos de risco. Mas nem sempre esses fatores representam os países que mais necessitam das vacinas ou as populações que mais se beneficiariam delas.

Em primeiro lugar, o tamanho da população de um país não traduz diretamente o número de infectados ou mortos por COVID-19, o que pode decorrer de diversos fatores (estrutura de assistência à saúde, realização de distanciamento, densidade populacional). A África do Sul, cuja população beira os 58 milhões, apresenta 675,72 mortes por milhão de habitantes. O Japão tem quase o dobro de sua população, com 126,5 milhões, mas apenas 39,68 mortes por milhão. Isso dá à África do Sul quase oito vezes mais mortes totais que o Japão. Segundo, a distribuição de vacinas conforme grupos de risco beneficia indiretamente países ricos e/ou desenvolvidos, que tendem a ter maior quantidade de profissionais da saúde e idosos. E naturalmente, por contarem com uma estrutura mais robusta de atenção e assistência à saúde, são mais bem preparados no enfrentamento da pandemia.

No esforço de simplificar as decisões de alocação e manter a neutralidade entre as nações, a OMS acaba por beneficiar certos países cuja imunização da população não vai contribuir tanto para a redução das mortes no planeta. Pode-se afirmar que as deficiências do modelo estão tanto na adoção de critérios rígidos demais incapazes de se adaptar às constantes mudanças de contexto da pandemia, quanto em tomar como ponto focal os países que receberiam as vacinas em vez dos indivíduos que serão salvos pela imunização.

O Modelo da Prioridade Justa como alternativa (Fair Priority Model)

Portanto, o grande desafio na propositura de modelos está em (1) pensar critérios flexíveis o bastante que evoluam conforme a pandemia e (2) guiar a tomada de decisões de acordo com o benefício que trará aos indivíduos. É com esse objetivo que um coletivo de eticistas e estudiosos capitaneado por Ezekiel Emanuel da Universidade da Pensilvânia propôs um modelo alternativo, denominado “Modelo da Prioridade Justa” (Fair Priority Model)​2​

O Modelo da Prioridade Justa toma como ponto de partida três valores: beneficiar pessoas e prevenir danos; priorizar os desfavorecidos; e igualdade de preocupações morais. Para os autores da proposta, a alocação de vacinas se trata de uma questão de justiça distributiva. Assim, é indispensável formular propostas sem que se leve em consideração a desigualdade entre os países recipientes; e distribuir quantidades distintas de vacinas entre países não é uma medida discriminatória, mas a escolha necessária para prevenir injustiças.

Pode-se dizer que o modelo tem como principal objetivo mitigar riscos e danos relacionados à COVID-19, dentre os quais há três principais: (1) mortes e danos permanentes à saúde resultantes da COVID-19; (2) danos indiretos à saúde provocados pela pandemia, em decorrência de stress mental, superlotação de hospitais e enfraquecimento da imunidade após contração da COVID-19; (3) piora das condições socioeconômicas que a pandemia venha a causar. Dentre eles, nenhum é mais significativo que a morte, em especial a prematura. Pois a morte de um indivíduo é um resultado irreversível e imensurável, impossível de ser compensado.​*​ Essa realidade se torna ainda mais grave quando pensamos que o resultado poderia ter sido evitado com a aplicação da vacina. Contudo, o grupo de pesquisadores aponta que os demais danos também são relevantes. COVID-19 pode provocar danos de longa duração que impactam profundamente a vida de seu antigo portador.​3​ Além disso, os prejuízos sociais e econômicos comprometem a educação, causam desemprego e empobrecem a população. Nesse sentido, o Modelo da Prioridade Justa busca ter em mente todos esses possíveis danos em sua abordagem.

Sua execução é dividida em três fases. A primeira visa impedir mortes prematuras e outros danos irreversíveis à saúde, diretos ou indiretos. A ideia aqui é reduzir, principalmente, mortes prematuras. Por isso, adota-se como métrica os anos de expectativa de vida que poderiam ser perdidos caso não houvesse distribuição da vacina. O objetivo desse número é quantificar o dano à saúde da população, ainda que eticamente imensurável. Está implícito nessa métrica fatores como o contágio a estrutura de assistência à saúde para tratamento de pacientes de COVID-19, por exemplo, e a quantidade de indivíduos vulneráveis à doença em virtude de suas condições de saúde ou da dificuldade de acesso a redes de assistência à saúde.

A segunda fase tem como finalidade reduzir danos sérios de natureza econômica e social. Saúde e economia estão intimamente ligadas: há, inclusive, uma relação direta entre condições socioeconômicas e expectativa de vida, que tende a reproduzir abismos de desigualdade social. Assim, seu principal objetivo é conter o avanço da pobreza e de condições socioeconômicas degradantes, bem como remediar a piora desses fatores provocada pela pandemia. Por isso, adota tanto a métrica da primeira fase, quanto indicadores que relacionam a distribuição da vacina com benefícios de ordem econômica: métricas que relacionam a alocação de vacinas com a capacidade de conter a desigualdade crescente e a queda do Produto Interno Bruto (PIB). Essa fase é secundária por buscar objetivos que não demandam especificamente o emprego de vacinas, e cujos danos são reversíveis. De certa forma, pacotes de estímulos e políticas públicas de ordem econômica podem ser até mais eficazes que a distribuição das vacinas. Por outro lado, a vacina é insubstituível como método eficaz de prevenção de mortes.

A fase 3 já se destina a viabilizar o retorno gradual à normalidade, através da contenção do contágio. Aqui, prioriza-se a alocação para países com taxas de transmissão mais elevadas.

Esse modelo apresenta uma melhora significativa em relação ao anterior. Em primeiro lugar, reconhece que estamos perante um problema de justiça distributiva e que tratar os desiguais de acordo com suas necessidades é primordial, Segundo, seu método de distribuição também colabora com o monitoramento eficiente da alocação das vacinas e de seus efeitos positivos para as populações que se beneficiam dela. Terceiro, leva em consideração os impactos econômicos da pandemia para a distribuição das doses, largamente ignorado pela proposta da OMS.

Críticas ao Modelo da Prioridade Justa

Pode-se apontar duas principais críticas ao Modelo da Prioridade Justa. A primeira, que esse modelo favorece os países cuja conduta durante a pandemia agravou da crise de saúde pública, e que hoje contam com mais mortes. A segunda, que colocá-lo em prática levaria a um “estímulo perverso”: o modelo induziria condutas que pioram o estado da pandemia para justificar o pedido de vacinas.

Entretanto, ambas críticas partem de uma perspectiva equivocada sobre os realmente afetados pela pandemia. “Punir” os países que negligenciaram o combate à pandemia pode fazer sentido de uma perspectiva internacional, mas é um julgamento míope em demasia. Privar esses países de vacina não é um ataque a seus governantes, reais responsáveis pelo descaso, mas aos indivíduos que sofrem os efeitos da pandemia e não tiveram o poder para tomar essas decisões prejudiciais à saúde. Do mesmo modo, a tese do estímulo perverso ignora tanto outros efeitos dissuasórios relativos ao agravamento da pandemia, por exemplo a perda de popularidade e os prejuízos socioeconômicos, como não reconhece o impacto no cenário global dessas decisões. Só comparar o soft power detido pelo Brasil e pela Nova Zelândia após suas condutas durante a pandemia que se torna fácil de perceber como a atitude de seus governantes influenciou a imagem de cada chefe de estado e de cada país.

A distribuição de vacinas no caso brasileiro

Imagem para a campanha do Programa Nacional de Imunizações do SUS. Fonte: Ministério da Saúde

O Brasil optou por adotar critérios semelhantes aos da segunda fase do plano OMS, mas não reproduz . Seu “Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra COVID-19” (PNI-COVID), publicado em 16 de dezembro de 2020 atualizado em 21 e 23 de janeiro deste mesmo ano, coloca como finalidade a preservação de serviços essenciais e a redução das mortes decorrentes de COVID-19, e prevê a distribuição de vacinas conforme “grupos prioritários”. Contudo, esses grupos são muito mais extensos que os previstos pela OMS. Os grupos abrangem: (1) indivíduos que trabalham na prestação desses serviços essenciais, como profissionais de saúde, educação e segurança; (2) grupos com mortalidade por COVID-19 mais elevada, como portadores de uma extensa lista de comorbidades e idosos; (3) grupos que se encontram mais vulneráveis ao contágio da doença ou tem acesso dificultado à assistência de saúde, como indígenas, quilombolas, populações ribeirinhas e moradores de rua. No total, são 77 milhões de brasileiros.

Nesse sentido, a proposta brasileira é mais completa que aquela apresentada à OMS e mais adequada à realidade nacional. Também apresenta alguns dos pontos levantados pelo Modelo da Prioridade Justa: tendo em vista que a quantidade de vacinas disponíveis será insuficiente para vacinar a população brasileira, o objetivo primário do PNI-COVID é prevenir a mais irreversível das condições — a morte. Fora isso, ressalta a importância de manter os serviços essenciais em pleno funcionamento, principalmente os de atenção e assistência à saúde. Tanto a exposição quanto a essencialidade do profissional de saúde justificam seu enquadramento prioritário.

Mas a enorme quantia de 77 milhões de brasileiros pertencentes aos grupos prioritários trazem consigo algumas dificuldades. Faz sentido chamar mais de um terço da população brasileira de grupos prioritários? Como discriminar mais de menos prioritários? Esses são elementos que o PNI ainda não esclareceu por completo.

Além disso, é importante se atentar às críticas ao modelo OMS que motivaram a elaboração de modelos alternativos. Seria possível que a adoção desses grupos como critério levasse a uma distribuição pouco razoável das vacinas? Afinal, a maior parte dos idosos está nas regiões Sudeste e Sul do Brasil, enquanto a Região Norte concentra a minoria. Por acaso, o mesmo padrão se repete para a distribuição de médicos. Esses dois grupos somados representam cerca de 36,86 milhões de pessoas, quase metade do total de indivíduos beneficiados pela prioridade Em meio à catástrofe que o Brasil presencia em Manaus e região, é importante nos perguntarmos se os critérios do PNI são suficientes para promover uma distribuição justa dos imunizantes no território brasileiro.

Conclusão: vacina para quem?

A pandemia do coronavírus impôs, entre tantos outros, o desafio de lidar com a escassez de recursos para enfrentá-la. A disputa pelas vacinas e seus insumos demonstra mais do que nunca a importância da tomada assertiva de decisões de saúde em uma escala global, bem como a fé nos esforços científicos e a cooperação nas escalas nacional e internacional. Sem dúvida, a escassez também é um preço que se paga pela difusão do obscurantismo no pior momento possível. E não fosse a aposta ao redor do mundo no desenvolvimento de imunizantes e uma boa dose de sorte, seria ainda pior.

Mas em meio à disputa pelos imunizantes, é importantíssimo levantar a seguinte pergunta: vacina para quem? A resposta demanda que busquemos preservar os indivíduos mais vulneráveis, cujo acesso a redes de atenção à saúde é limitado e estão mais suscetíveis a sofrer consequências irreversíveis da infecção. E ainda, atentar-se às populações mais sofrem impactos causados pela pandemia.


  1. ​*​
    Os proponentes do Modelo da Prioridade Justa também apontam que a opinião popular reconhece o valor ético da morte prematura, que impede o indivíduo de alcançar seus objetivos de vida e buscar sua realização pessoal. Ver n. 2, p. 1310.
  1. 1.
    Organização Mundial de Saúde. WHO Concept for Fair Access and Equitable Allocation of COVID-19 Health Products. Organização Mundial de Saúde; 2020:34. Accessed January 19, 2021. https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/who-covid19-vaccine-allocation-final-working-version-9sept.pdf
  2. 2.
    Emanuel EJ, Persad G, Kern A, et al. An ethical framework for global vaccine allocation. Science. Published online September 3, 2020:1309-1312. doi:10.1126/science.abe2803
  3. 3.
    Iacobucci G. Long covid: Damage to multiple organs presents in young, low risk patients. BMJ. Published online November 17, 2020:m4470. doi:10.1136/bmj.m4470

Advogado formado na Faculdade de Direito da USP, desde sempre nutriu um profundo interesse pelos dilemas em que a ética, o direito e a ciência se encontram. No tempo livre gosta de ler, caminhar, e fingir que toca violão.

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