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Bioética em tempos de COVID-19 I: o ressurgimento da bioética no debate público

A Morte de Sócrates, de Jacques-Louis David (1787)

São muitas as vozes que se insurgiram em tempos de COVID-19. Se há um consenso em meio ao caos que o advento do coronavírus ensejou, ele reside nos impactos profundos e duradouros deixados por uma crise da saúde global sem precedentes. Não à toa, a gravidade da pandemia vêm rendendo comparações com a gripe espanhola, ocorrida 100 anos antes. Contudo, outro aspecto inegável de nossos tempos está na sobrecarga de informações. Tal como na brilhante exposição de Aldous Huxley em “Admirável Mundo Novo”, o fluxo incontrolável de informações e entretenimento é sintoma de uma distopia, na qual a privação do silêncio se traduz na privação do momento de reflexão. 1

Por isso, é tentador pensar em uma ética do silêncio. Mas o esforço pela criação de sentido em tempos sombrios é tão responsável quanto, senão mais responsável, que o silêncio. O silêncio torna o presente mais suportável, mas não nos ajuda a pensar em soluções para o futuro.

É com esse objetivo que o Portal Bioética inicia seu primeiro observatório “Bioética em tempos de COVID-19”. Este primeiro artigo tratará do ressurgimento da bioética no discurso popular, que vem se mostrando uma ferramenta essencial para enfrentar os dilemas que afloram da pandemia.

Bioética: um conceito ofuscado

O surgimento da bioética remonta a um processo histórico, ainda em seguimento com a criação contínua de novas áreas e subáreas de estudo. Ele culmina na década de 70 com os movimentos de direitos dos pacientes. Na mesma década, Potter cunha o neologismo em 1970 na publicação do artigo “Bioética, a ciência da sobrevivência”. Como já tratado em um artigo anterior, é um termo com várias dimensões de significado. Mas nenhuma parece mais proveitosa no contexto desse observatório que a de “ciência da sobrevivência”, ou sabedoria da sobrevivência.

Potter define sabedoria como o conhecimento de como usar o conhecimento. A bioética, por sua vez, é a sabedoria que se ocupa dos valores e julgamentos destinados a direcionar o uso e desenvolvimento do conhecimento científico, tendo como finalidade a sobrevivência da espécie humana. O progresso irrefletido é um progresso perigoso: é capaz de por em cheque a própria permanência da humanidade. 2 Assim, a bioética se torna fundamental, tendo em vista o potencial impacto de nossas transformações sociais, culturais e tecnológicas. 3

Tendo em vista a emergência do movimento da bioética durante o período das mobilizações pelos direitos dos pacientes, viu-se uma explosão do termo sendo empregado como sinônimo de ética médica. 4 Isso teve como consequência o ofuscamento de um aspecto tanto quanto, senão mais significativo, que a ética discutida à beira da maca: a dimensão global da bioética. Afinal, os avanços realmente significativos na ciência vieram através de conhecimento que poderia ser aplicado às populações como um todo, não no âmbito da medicina individualizada. 5

Assim, a bioética ficou relegada a clínicas, hospitais, laboratórios e universidades.

O custo do silêncio

Uma pesquisa rápida na Wikipédia traz 19 resultados referentes a epidemias e pandemias ocorridas no século XXI, quase uma para cada ano do século. O Brasil sofreu o impacto de pelo menos quatro: gripe suína (H1N1), dengue, seguida pela nova onda em um combo de três doenças do Aedes Aegypti (dengue, zika e chikungunya), e agora o COVID-19. Isso sem contar os surtos de tuberculose e sarampo, além do retorno da sífilis, todos encarados com quietude pelo Ministério da Saúde. A estrutura de saúde pública também sofre uma redução progressiva de leitos desde 2010, decorrente de reduções orçamentárias e deficiências na gestão. Fora os desastres ambientais decorrentes do desmatamento na região amazônica e do rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho, que somam centenas de mortos e impactos irreversíveis ao ecossistema.

Encarar a ciência e o exercício reflexivo como inimigos, como um discurso ideológico digno de rejeição, desarma a população de instrumentos necessários para a defesa de seus interesses e dignidade. A contrário do que se pensa, o convite à reflexão bioética não é um convite à doutrinação, mas ao pluralismo e à criação de uma consciência da relação de um indivíduo com a sociedade, com a ciência, e com o planeta.

Seja pela circunstâncias ou pelo acesso à informação, as questões de bioética se tornaram inevitáveis frente a desastres como esses. Pois eles demonstram, de um lado, como a saúde (como outros recursos destinados ao bem-estar humano) é um recurso limitado e precioso; e, de outro, o preço que se paga por uma educação deficitária; neste caso, bioética e humanista.

O retorno da bioética ao debate público

Só recentemente a discussão retornou ao contexto público, em meio aos modismos do COVID-19. E bom que voltou.

Publicações dedicadas à bioética e a discussões de saúde pública como The Hastings Center Report estão em maior evidência. No último domingo (10/05), um canal popular de notícias veiculou uma reportagem sobre a bioética na pandemia. O caos que se instaurou com o coronavírus provou como estamos desinformados e perdidos com nossos valores quando defrontados com um episódio sem precedentes. 6

O descompasso entre progresso científico e social, de um lado, e a reflexão e educação, do outro, provou o elevado preço que pagamos com o silêncio. 7. Contudo, isso também se reflete no sentimento de impotência da população brasileira frente aos tomadores de decisões. Na necessidade de que o público tome para si as discussões relativas às políticas públicas de saúde, que cobre sua inclusão no debate acerca dos rumos da saúde brasileira. 8 Inclusão essa muito deficitária no contexto brasileiro. 9

O brasileiro se encontra, a exemplo de indivíduos de todo o mundo, carente de informações e impotente frente ao processo decisório nas questões de saúde. Portanto, deve-se defender tanto a educação ética quanto a inclusão da população em debates de relevância no âmbito da saúde. Nesse sentido, o ressurgimento da bioética no debate público é uma verdadeira conquista. Só assim poderemos esperar que criemos uma ponte para o futuro que almejamos.

  1. HUXLEY, A. The Mike Wallace Interview: Aldous Huxley: depoimento. [18 de maio de 1958]. Nova Iorque: ABC. Entrevista concedida a Mike Wallace. Transcrição disponível em http://www.hrc.utexas.edu/multimedia/video/2008/wallace/huxley_aldous_t.html
  2. POTTER, V.R. Bioética: ponte para o futuro. Tradução de Diego Carlos Zanella. São Paulo: Edições Loyola, 2016.
  3. SAVULESCU, J. Bioethics: why philosophy is essential for progress. J Med Ethics, 2015, v. 41, p. 28-33.
  4. POTTER, 2016, p. 11-12.
  5. POTTER, 2016, p. 170.
  6. POTTER, 2016, p. 197-207.
  7. SAVULESCU, 2015.
  8. SCHICKTANZ et. al. The ethics of ‘public understanding of ethics’—why and how bioethics expertise should include public and patients’ voices, Med Health Care and Philos, 2012, v. 15, p. 129-139.
  9. TRETTEL, D.; LEÃO, L. Teoria e prática da participação na Agência Nacional de Saúde Suplementar. Revista de Direito Sanitário, v. 15, n. 3, p. 91-121, 14 abr. 2015.

Advogado formado na Faculdade de Direito da USP, desde sempre nutriu um profundo interesse pelos dilemas em que a ética, o direito e a ciência se encontram. No tempo livre gosta de ler, caminhar, e fingir que toca violão.

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