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Os animais têm direitos?

 

Testes em laboratório, tipificação penal de maus tratos, criação de carne sintética… os direitos dos animais englobam uma série de discussões bioéticas em torno do direito à vida e respeito dos animais não-humanos, termo corrente entre seus defensores para designar o restante do reino qual a própria espécie humana integra. Por mais que seja um fato de que se tratam de seres vivos, o status de sua dignidade é algo que ao longo da história e das sociedades humanas acompanhou movimentos diversos e continuam bastante presentes nos dias de hoje.

Aspectos históricos

Ao redor do mundo e em diferentes épocas adotaram-se diferentes visões a respeito dos animais. Nas religiões védicas como o hinduísmo e budismo há um respeito à todas as formas de vida por conta de dois dogmas: o da não-agressão e a doutrina da metempsicose, isto é, a reencarnação enquanto animal não-humano. Este segundo dogma estabelece uma continuidade espiritual entre seres humanos e os animais. No mundo greco-romano havia disparidade, pois haviam posturas de respeito aos animais (afinal, setores da sociedade grega também acreditavam em metempsicose, como a escola de Pitágoras) e vegetarianos convictos feito Sêneca. Outros, no entanto, acreditavam no primado da humanidade sobre os animais, como fez Aristóteles ao colocar o animal em condição de servidão natural à espécie humana em situação análoga à dos escravos em relação aos homens livres.

Foi a cosmovisão bíblica, todavia, que mais influenciou o tratamento para com os animais por séculos nas sociedades ocidentais. Investiu-se daí duas condutas diferentes em relação aos animais não-humanos igualmente inspiradas na tradição judaico-cristã: uma primeira delas na missão de Adão enquanto cuidador do Éden, e por conseguinte, de toda a Criação (Gênesis 2:15), e uma segunda que ocorre após o Dilúvio, no qual Deus decreta a Noé que o ser humano governe as demais criaturas (Gênesis 9:2-3). Na primeira delas, a humanidade é guardiã da natureza, e portanto, uma espécie especial; na segunda, uma proprietária, detentora, protagonista cósmico para o qual o mundo foi feito para servir. Ambas se igualam no sentido de serem profundamente antropocêntricas. 

Essas duas leituras do papel do humano com os demais animais acompanhou por séculos as sociedades ocidentais, e embora distintas, não são contraditórias. Isso não significa que um estatuto dignificante dos animais não fosse reconhecido no curso desse tempo. Na Modernidade, filósofos como Montaigne, Hume e Condillac reconheciam faculdades cognitivas nos animais, e, capacidade de empatia. Descartes por sua vez foi mais cruel, porque ao dizer que os animais não tinham alma em seu Discurso do Método ao reprová-los no teste da ação e no teste da linguagem, considerou-nos como que máquinas orgânicas desprovidas de qualquer dignidade. O cartesianismo ofereceu um grande atraso nos direitos dos animais, não considerando eles diferentes de máquinas, como mostrado na inspiração do pato de Vaucanson (imagem abaixo).

Pato de Vaucanson

Ainda assim, outros filósofos foram aos poucos “vitalizando” os animais. Bentham, embora não fosse a favor de criar direitos para os animais não-humanos, reconhecia a capacidade deles sentirem dor, e por sofrerem coloca-os enquanto sujeitos morais no mesmo nível dos seres humanos. Schopenhauer é certamente o filósofo mais notável por sua compaixão pelos animais não-humanos. Reconhecendo a diferença deles para os humanos apenas no uso da razão pelos segundos, os animais, por sua vez, são sujeitos à dor e finitude de sua existência assim como nós. Reconhece com isso a grandeza moral no reconhecimento dos animais enquanto entes morais, como deixa explícito nas Dores do Mundo:

“A piedade, princípio de toda a moralidade, toma também os animais sob a sua proteção, ao passo que nos outros sistemas de moral europeia, têm para com ele pouquíssima responsabilidade e solicitude. A suposta ausência de direitos dos animais, o preconceito de que o nosso procedimento para com eles não tem importância moral, que não existem, como se diz, deveres para com os animais, é justamente uma ignorância revoltante, uma barbaridade do Ocidente, cuja origem está no Judaísmo…
[…]
A piedade com os animais está tão intimamente ligada com a bondade de caráter, que se pode afirmar que quem é cruel com os animais não pode ser bom.”

Foi a biologia, e não a filosofia, que deu o primeiro salto adiante na dignificação dos animais. O darwinismo apresentou um factual progresso nos direitos dos animais que até então estava no plano filosófico. Com a evolução, a continuidade entre as espécies foi afirmada como um dado biológico, e o ser humano perdeu o lugar especial qual atribuía-se perante a natureza. Logo, não haviam mais argumentos para distinguir qualitativamente humanos e não-humanos.

Os direitos dos animais não-humanos

De lá para cá, os direitos dos animais foi avançando pelo mundo, contando nessa conquista a participação de ambientalistas, juristas e outras vocações e motivações ideológicas. Por exemplo, no século XIX houveram ativistas contra a vivissecção no Reino Unido e nos Estados Unidos. No Brasil, a primeira lei de proteção aos animais foi o decreto nº24.645/1934 de Vargas, contando com espaçados avanços como a Lei de Crimes Ambientais de 1998 que criminaliza atentado à vida e bem-estar de animais silvestres e, mais recentemente, a Lei 14.062/2022 que criminaliza maus tratos à cães e gatos. Setores da indústria também lutam para superar a pesquisa com animais, como fez a indústria de cosméticos que hoje usa pele sintética.

O que está em torno desses avanços e debates distendidos e derivados dos direitos dos animais (como o não comer carne) são questões éticas e ontológicas. Começando pela segunda, a ontologia define o status dos animais enquanto seres existentes. Como vimos, desde Darwin a evolução destituiu o lugar do ser humano enquanto uma espécie privilegiada no mundo, situando-a enquanto mais uma espécie que surgiu no curso da evolução da vida. Por esse ponto, a vida de animais humanos e não-humanos vale a mesma coisa para o planeta e em si mesmas. Além dos argumentos que os filósofos modernos já reconheceram dos animais poderem sentir dor, contemporaneamente evoca-se também o fato de serem conscientes ou, mais precisamente, sencientes (a capacidade de ter sensações e perceber a própria consciência), o que não incorpora todos os animais como entes de direito.

A partir disso, as questões morais aparecem. O fato de serem seres vivos é algo que desde a Antiguidade é reconhecido, só que as circunstâncias que os animais têm direitos – e quais direitos – reconhecidos é circunscrita à fatores de ordem legal, cultural e filosófica. Por exemplo, mesmo que haja leis para proteção de animais silvestres e domésticos ao redor do mundo, práticas como rituais de sacrifícios animais continuam a existir em diferentes manifestações religiosas. Para além do relativismo cultural, é certo dizer que direitos são auferidos na medida em que a ética se alinha com uma ontologia sobre animais humanos e não-humanos que seja darwiniana. 

É por essa linha que Peter Singer, filósofo icônico na defesa dos direitos dos animais, trabalha suas teses. Em Libertação Animal, Singer opera com o conceito de especismo, uma forma de discriminação que inferioriza tudo aquilo que não seja humano. A partir dele, os seres humanos, aos serem especistas, legitimam por diferentes vias uma falsa supremacia humana sobre os animais não-humanos que permite-os fazer tudo o que bem entender com eles. Embora até abusos como tortura e matança desnecessária sejam reprováveis a muitos especistas, isso não significa que outras práticas sejam menos repudiadas ou consideradas exploratórias uma vez que o conforto humano estaria à frente de qualquer reconhecimento de dignidade animal. Essa obra de Singer tornou-se leitura corrente e indispensável aos defensores dos animais.

Nem todos os filósofos possuem posturas tão defensora dos direitos dos animais como Singer. É o caso, por exemplo, do filósofo inglês Roger Scruton, que em On Hunting e Animal Rights and Wrongs estabelece duas posturas antipáticas aos defensores dos animais: a defesa da caça como uma atividade tradicional e cultural (como trata da caça às raposas nas duas obras) bem como a ausência de direitos animais pois, por não participarem da sociedade como os humanos, não têm deveres, o que seria uma anomalia da sociedade liberal que concebeu direitos e deveres considerando apenas os seres humanos. O francês Francis Wolff também defende uma atividade reprovável aos defensores dos animais, as touradas, alegando que os humanos têm valores éticos e estéticos, e a tourada é uma forma de expressão que enaltece valores estéticos em forma de espetáculo.

Singer e Scruton podem facilmente serem pareados e postos para terem suas ideias conflitadas. Se a nossa sociedade organizada por uma ordem liberal considerou apenas os seres humanos, isso significa que ela foi feita ainda em uma época que não se reconhecia essa continuidade entre as espécies no âmbito biológico. Isso não significa que todos sejam igualmente reconhecidos, pois o especismo acaba imprimindo uma scala naturae de quais animais são mais valiosos e quais são menos providos de direitos. É aquela velha situação clássica aos defensores dos animais: por que apreciamos tanto os cachorros e abatemos os porcos? Agora se considerarmos os mosquitos ou baratas, estes só se salvam por razões ambientais.

Animais podem não ter direitos políticos (como o de votar) ou sociais (como aposentadoria e direitos trabalhistas) como seres humanos, o que não significa que direitos não possam ser aplicados segundo a natureza deles com relação à integração com os seres humanos, seja considerando a sociabilidade deles no meio dos humanos ou para fins de proteção ambiental. Se animais não contam com deveres como o de pagar impostos ou não cometer crimes, por outro lado, por questões morais e biológicas podem facilmente ter garantias reconhecidas por serem organismos vivos que interagem e coabitam nosso planeta e, muitos deles, nossos espaços. As fronteiras entre direito, biologia e ética ficam muito mal demarcadas quando se trata de debater esse assunto, porque uma coisa acaba requerendo ou derivando a outra. 

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